domingo, 14 de março de 2010

Jean Rouch e o cinema-verdade

“Mais me interessa provocar a realidade pela presença da câmera, do que filmar a realidade tal como ela é.” Jean Rouch (1917- 2004), etnólogo e cineasta.

“Les tambours d’avant - Tourou et Bitti” (1972, doc 11')

“Os tambores do passado” [tradução minha] trata do ritual religioso de uma tribo do Niger – os Sanghay. Tourou e Bitti são os nomes, em dialeto local, dos tambores arcaicos que compõem o grupo de percussão que acompanha o cerimonial ritualístico da aldeia. Filmado em apenas dois planos-seqüência, as cenas revelam de forma simples e direta vários aspectos de um rito sagrado daquela comunidade africana. A narrativa é do próprio Jean Rouch, toda em off.

No primeiro plano de filmagem, a câmera mostra a tribo do exterior e vem se aproximando, tal qual o olhar de um visitante que ali adentra pela primeira vez. A duração desse plano é de cerca de 1 minuto. Nesse tempo, Rouch introduz o espectador no contexto do que seria filmado... uma “dança de possessão”, para solicitar ao génie de la brousse – espírito transcendental ou ser mítico – proteção para as próximas colheitas (há três anos a plantação vinha sendo atacada por insetos).

Ele explica que fora convidado pelos líderes espirituais da tribo para assistir ao quarto dia da cerimônia e que, no final da tarde, embora nenhum dançarino tivesse ainda sido possuído, decidira “realizar um plano-seqüência de alguns minutos, a fim de conservar um documento filmado em tempo real sobre esses tambores do passado”. Na seqüência de sua narrativa, Rouch conclui “assim, deu-se este ensaio de cinema etnográfico na primeira pessoa”, fechando o primeiro plano do filme. No final do plano, com um movimento de câmera descendente, Rouch parece convidar o espectador a tocar as mãos naquele solo, terra árida, de difícil cultivo, motivo pelo qual se realiza o ritual.

O segundo plano começa com a imagem em negro, abrindo-se lentamente, câmera apontada para o céu e dirigindo-se ao horizonte com a aldeia ao fundo; tem a duração aproximada de 8 minutos. Logo de início, o diretor expõe claramente – sempre em off – a sua visão do que seja fazer um filme, visão esta que serviria bem para definir o chamado “cinema direto” (ou "cinema-verdade"), do qual Rouch foi um dos principais precursores: “entrar em um filme é mergulhar na realidade e estar ao mesmo tempo presente e invisível”.

Rouch, câmera na mão, vai se aproximando do povoado, por entre paliçadas, até alcançar o perímetro que delimita as cabanas. Pouco antes de entrar na aldeia, aparece um homem, todo de branco, que lhe aguardava (Zimma Daouda Sido); é a partir desse personagem que o espectador vai descobrir os espaços em torno do qual se desenrolará o ritual. Rouch segue os passos do homem, mas o movimento da câmera segue seu olhar inquieto, que tudo observa.

Já na entrada percebe um curral de cabras que seriam sacrificadas em rituais futuros e, mais adiante, mostra currais de cavalo vazios e mulheres sentadas embaixo de uma palhoça. Adentra-se, em fim, a um espaço circular onde vivem os habitantes do vilarejo; aliás, este plano em forma de círculo será explorado diversas vezes pelo diretor, já que esta é a geometria formada pelos participantes da cerimônia – músicos e dançarinos – e também pelos moradores que simplesmente observam o espetáculo.

Essa dinâmica circular do filme parece indicar o caráter “cíclico” do ritual, como um evento que se reproduz e que pode ser repetido infindavelmente. Quando Rouch se aproxima do círculo destinado à dança de possessão, ele encontra outro membro da comunidade, vestido de azul marinho – o velho Sangou Albidou –, que continua o papel do seu confrade, o de guiar o cineasta. Seguindo este velho homem, Rouch depara-se diante do conjunto de tambores – tema central da história – e aproxima a câmera de um deles (o Tourou), para mostrá-lo em close; de novo, uma forma circular. Faz então um movimento semicircular com a câmera, para mostrar os diferentes atores que compõem o grupo de percursionistas.

Minutos mais tarde, após uma breve interrupção do som dos tambores, a câmera segue um homem e uma mulher em transe, possuídos pelo génie de la brousse. Em seguida, filma alternadamente os músicos e os dançarinos em possessão; esta seqüência é facilitada pelo movimento dos dançarinos, que vão de encontro aos músicos – criadores dos rufares de Tourou e Bitti – responsáveis pela evocação do transe. É o tema do “encontro” presente no documentário, que é fundamental tanto na forma quanto no conteúdo. Finalmente, Rouch se afasta do ritual para colocar-se como espectador das pessoas em transe, e termina o plano como começou: câmera apontada para os raios de luz do sol poente, com a imagem enegrecendo suavemente.

A narrativa que acompanha essas imagens finais é rica em poesia e conteúdo etnológico: “Os deuses agora esperam pelo sacrifício [o sangue de uma cabra que lhes seria ofertado], e eu devia continuar filmando, mas quis apenas fazer um filme, voltar ao começo da minha história, para ver o que viam as crianças da escola, esta pequena praça do vilarejo, os últimos raios de sol durante uma cerimônia fértil, onde os homens e os deuses falavam das colheitas futuras”.

Ao analisar Tourou et Bitti, é possível traçar um paralelo entre a técnica de filmagem de Jean Rouch e a de Robert Flaherty; ambos utilizam a câmera como elemento participativo da história, embora no primeiro não haja reconstituição ou interpretação. O lugar comum dos dois cineastas é marcado pela proximidade entre câmera e personagens; a câmera pilotada por Rouch torna-se praticamente um personagem que participa do ritual. Ela converte-se não só num elemento catalisador do ritual – deslanchando a possessão espiritual –, mas também em parte integrante do transe, constituindo-se protagonista.

De fato, após quatro dias de espera pela encarnação do espírito génie de la brousse, Rouch é convidado pelos líderes religiosos da tribo a filmar a continuação da cerimônia, conforme ele próprio narra no prólogo do filme. Revela-se o cineasta etnólogo, cujo embasamento fílmico se sustenta em uma “etnologia participativa” – que se exerce em contraposição à “etnologia de época”, baseada no colonialismo –, em que o indivíduo não só é analisado como objeto de estudo, mas também participa desses estudos.

Na realidade, o trabalho de Jean Rouch não se limita apenas à realização do documentário; ele atribui grande importância ao sentido de continuidade que o registro visual possibilita. Sempre restitui suas imagens às populações filmadas. Sua completa integração com os habitantes da tribo, os personagens que compõem “os tambores do passado”, seguida de um profundo estudo etnológico, lhe fornece embasamento para o ensaio que escrevera meses depois da filmagem, apresentado num colóquio em Paris sobre “A noção de pessoa na África negra” [1]. Neste ensaio, Rouch analisa as inter-relações dos processos de transfiguração da pessoa possuída, do mágico, do bruxo, do cineasta e do etnógrafo.

Robert Flaherty (câmera na mão)
Como nos filmes de Flaherty, os habitantes da comunidade africana abordados por Rouch são consencientes e aceitam ser filmados. Mas ao contrário da démarche de Flaherty, cujo interesse etnológico era basicamente penetrar na cultura do outro – vive dois anos no círculo polar norte, junto aos Inuits, para filmar “Nanouk, o esquimó” –, mas sem abdicar de sua visão ocidental, Rouch não idealizara seu documentário do ponto de vista dos Sanghay.
















A démarche roucheana teve como pressuposto a formação de laços estreitos com a cultura daquela comunidade, uma longa “preparação de terreno”, a qual fora alcançada muito antes do projeto para documentar cinematograficamente o ritual. Isto leva o espectador a associar-se com a visão do cineasta, uma vez que este o conduz, com certa credibilidade, a entrar em um universo desconhecido, a partir do exterior, mas também porque sua posição de cineasta é narrada em voz off.

Efetivamente, os comentários de Rouch nada tem a ver com as locuções em off que normalmente aparecem nos documentários; não há redundância entre o que narra e a imagem mostrada, seus comentários levam o espectador a uma reflexão sobre o processo de filmagem do cineasta: no início do segundo plano-seqüência, ele faz um paralelo entre o entrar na tribo e o entrar num filme. Sua narrativa confere precisão à natureza das imagens e, assim, possibilita canalizar o olhar do espectador, explicitando-lhe as imagens, tornando-as inteligíveis, para que o mesmo possa ver as coisas simplesmente como elas são, ao invés de induzi-lo a interpretá-las. Nesse aspecto, o epílogo do filme é emblemático: Rouch se distanciando da cena do ritual e adotando o ponto de vista das crianças da aldeia.

Dziga Vertov (em ação)
Por outro lado, o papel ativo da câmera de Rouch faz do seu cinema ponto comum com o de Dziga Vertov (“o homem da câmera”); para ambos, filmar é “captar a vida de improviso”. De fato, é pela ação da câmera que o documentário de Rouch tem o poder de transmitir, com tamanho realismo, aquele ritual insólito, levando o espectador para uma viagem em tempo real. A câmera está ali, movendo-se em todo o espaço destinado ao ritual, ela se faz presente a todos, líderes da tribo, músicos, dançarinos e habitantes que observam o espetáculo.

Levada nos ombros do diretor, ela forma com ele uma só “entidade”, capaz de desencadear o processo de transe naqueles que, até então, esperavam em vão os “espíritos superiores”. No momento em que os tambores cessam de rufar, a câmera continua em ação, em movimento, aproximando-se ainda mais dos músicos que, inesperadamente (ou justamente devido à presença dela), voltam a tocar, fazendo com que, instantes depois, eclodisse o transe nos dançarinos, tornando mais intenso e animado o ritual.

Neste curta-metragem, Rouch procura aproximar sua câmera o máximo possível do olhar humano, transmitindo ao espectador um sincronismo de imagens em tempo real, graças ao uso do plano-seqüência. Essa proximidade estreita da câmera com os tipos humanos filmados propicia ao espectador uma percepção realística dos lugares, dos acontecimentos e dos personagens, e tornou-se uma marca presente em toda a filmografia de Rouch.

[1] Jean Rouch, « Essai sur les avatars de la personne du possédé, du magicien, du sorcier, du cinéaste et de l'ethnographe », dans La notion de personne en Afrique noire, Colloque international du Centre national de la recherche scientifique (Paris, 11-17 octobre 1971), Paris, Éditions du CNRS, 1973, p. 529-543.

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